ARTIGOS
A CONDIÇÃO DE QUALIDADE E A MOTIVAÇÃO PARA A QUALIDADE
Ayrton Sérgio Rochedo Ferreira
Parece que as palavras deixam de significar quando passam a simbolizar. Assim, certas expressões, quando adquirem a força de um símbolo, passam a ser utilizadas pelos significados mágicos que lhes são imputados e não pelos seus sentidos semânticos verdadeiros. Um exemplo vivo dessa magia que o inconsciente coletivo ajuda a criar é a já sacralizada expressão QUALIDADE. O termo adquiriu, por si só, a força de uma ferramenta poderosa, de um processo encantado, que sintetiza uma terapia milagrosa para as empresas, quando essa não é a verdade.
Qualidade é (apenas) uma condição que uma organização pode atingir, em que todas as suas funções e todas as pessoas que nela trabalham, convergem para um estado de conformidade em relação aos padrões e a satisfação de seus clientes e demais partes interessadas. Na sua essência, não é, portanto, um processo, um sistema, um programa (embora programas tenham recebido esse nome por transferência de significado) mas uma condição organizacional a qual se chega pelos mais variados caminhos, através de várias metodologias e pela via de diversos instrumentos.
Não se vende nem se compra qualidade, assim como não se vende nem se compra saúde. Obtém-se saúde a custa de cuidados pessoais e, quando necessário, de procedimentos terapêuticos específicos e prescritos caso a caso. Saúde é uma condição e não um artigo de comércio. Assim é com a qualidade.
Seria útil então, que tentássemos caracterizar as condições de qualidade, para nos instruirmos dos caminhos alternativos para alcançá-la. Dadas essas condições, seria possível analisar, caso a caso, os procedimentos mais adequados para o seu atingimento em determinada empresa.
Operem em "estado de qualidade" as empresas que adquirem uma consciência clara de que trabalham para seus clientes (internos e externos) e demais partes interessadas, atendendo às suas necessidades com níveis de conformidade cada vez mais altos em relação aos padrões estabelecidos por eles próprios. Mas não é só isso que caracteriza um estado de "qualidade". Essa consciência e o grau de conformidade alcançado em relação às suas necessidades, só adquirem o significado de "qualidade" quando chegam a proporcionar tal satisfação nos clientes e demais partes interessadas que passam a ser considerados como uma vantagem competitiva em relação aos concorrentes. São os resultados negociais da qualidade, sem os quais, do ponto de vista empresarial, ela nem mesmo se justificaria.
No âmago dessa condição, ilustrada por assertivas clássicas, tais como "todos são responsáveis pela qualidade", repousa a questão da atitude. Expressões de efeito são utilizadas para dizer que a qualidade começa na pessoa, que só faz qualidade quem tem qualidade, que a qualidade do produto é o produto da qualidade das pessoas etc. Ora, são colocações mais ou menos provocadoras, que operam uma certa dose de desafio e sedução, mas que infelizmente, não tem sido suficientes para garantirem, sozinhas, atitudes consistentes e sustentadoras de um estado de qualidade.
O que as empresas têm assistido ao longo desses anos de impregnação com as idéias de qualidade, é um discurso doutrinário que tenta expor o nervo comportamental da questão atribuindo à qualidade um significado quase ético: a qualidade pela qualidade, como algo intrinsecamente bom, pela qual temos que fazer nossa opção preferencial se não quisermos ficar à margem de uma nova moral empresarial. E a grande verdade é que esse apelo messiânico, só tem conseguido provocar reações episódicas, mas não mudanças definitivas de atitude em benefício dos negócios.
É fundamental que se entenda que o comportamento individual ou coletivo só se modifica quando a mudança é mais gratificante ou menos penosa do que persistir no comportamento atual. A qualidade não é implicitamente boa; boas, são as conseqüências que a satisfação dos nossos clientes e demais partes interessadas podem nos trazer. Se não pudermos contabilizar estas conseqüências em benefício dos negócios, o mérito da qualidade passa a ser um assunto discutível. É preciso evoluir do estágio da qualidade dogmática para um estágio mais racional, construído sobre os ganhos que a qualidade pode nos conferir.
Para nossos gerentes, supervisores, e pessoal de execução, temos que descobrir esses ganhos de forma prática, caso a caso. Descobrir junto com eles, com vistas nos negócios da empresa, as vantagens de uma atitude comprometida com a conformidade, com a satisfação dos clientes e a aquisição de vantagens competitivas daí decorrentes. Essa é a grande engenharia da qualidade: não só provar que os custos da não conformidade crescem exponencialmente quanto mais tarde forem detectados no processo, mas dispor de relações claras que mostrem, além da economia do retrabalho, as conseqüências positivas produzidas pela conformidade obtida da primeira vez.
Temos preferido o discurso que apela para a ética e a moral da qualidade ao longo de todo o processo; afirmamos que depois do esforço de todos para concluir um produto melhor e essencialmente mais barato (porque isento de retrabalho), nos aguarda no final da linha um cliente encantado, mas longínquo que ficará satisfeito com o produto que recebeu. E esperamos que essa imagem, por si só, gratifique os corações e mentes dos que, no chão da fábrica, no canteiro da obra e no salão do escritório, não experimentaram nenhuma outra satisfação a não ser a de saber que, afinal, o cliente ficou satisfeito. Será que com a mesma capacidade com que criamos sistemas e métodos de avaliação e controle de não conformidades, de rastreamento, de certificação de processos, temos criado esquemas concretos de participação e envolvimento de pessoas nos resultados da qualidade? Esse é o desafio maior para que se chegue a um estado de qualidade: o estabelecimento de relações claras de causa e conseqüência entre a satisfação dos que se beneficiam da qualidade recebida e a satisfação daqueles que trabalharam para produzi-la. E isso não se obtém com recursos de mídia interna, nem com o alarde de programas alegóricos de envolvimento, que chegam as raias do histrionismo. Isto seria criar símbolos e perder significados. Ao contrário, o estabelecimento dessas relações de conseqüência a que nos referimos, se faz, caso a caso, buscando caracterizar como cada fornecedor pode usufruir as vantagens competitivas que o melhor atendimento a seus clientes internos pode propiciar; é por intermédio da cadeia de clientes internos que se alcança todas as partes interessadas no negócio.
E o que sabemos nós de vantagens competitivas quando se trata de nossos clientes internos? Para início de conversa, trazemos conosco, na condição de fornecedores internos, a falsa segurança de que não temos competidores.
Vale aqui transcrever algumas reflexões que denotam, com rara simplicidade, a dimensão da mudança que temos que enfrentar:
"Que vantagens a satisfação do meu cliente interno poderá me trazer se sou eu seu único fornecedor?”
“Por que meus clientes internos ficariam insatisfeitos com meu trabalho se não estão pagando por ele?”
“As únicas conseqüências de meu trabalho, virão de meu chefe que poderá elogiá-lo, contestá-lo ou recusá-lo, com conseqüências sobre meu
desempenho; dificilmente a opinião de meus clientes internos me acarretarão quaisquer conseqüências, até por que, internamente, o único suposto de
lidar com o meu desempenho é meu chefe imediato. Assim é a estrutura da empresa".
De fato, enquanto a conformidade das operações intermediárias dependerem muito mais da avaliação do chefe imediato que dos clientes internos, a qualidade passará ao largo; enquanto o reforço e o reconhecimento pelo desempenho, ao longo do processo, forem uma prerrogativa (e uma arma) somente da chefia imediata, será muito difícil pensar em como a satisfação do cliente poderá mudar comportamentos e provocar mais qualidade. O estado de qualidade supõe uma reavaliação dessas relações, onde o ambiente clássico de hierarquia verticalizada cede espaço para as relações horizontais que gratificam pela satisfação do cliente interno.
É preciso mudar o ambiente para atingir essa condição. Isto se obtém com uma conjugação de esforços, sistemas e programas coordenados, capazes de estimular a mudança nessa direção. Não há um programa para isso. Antes de tudo, trata-se de uma experiência e não de um processo preestabelecido. Uma rica e apaixonante experiência, diga-se de passagem, levada a cabo pelo amadurecimento de gestores e equipes que sejam capazes de auferir resultados mercadológicos com a qualidade.
Qualidade é fonte de resultados e parcelas desses resultados têm que ser experimentadas por todos os que criam os seus estados.
Enquanto não somos capazes de resolver essa questão, insistimos em mais "treinamento de conscientização" sobre qualidade, que é a forma de suprir com doutrina os esquemas práticos que nos faltam para provocar as verdadeiras mudanças.
Durante quanto tempo continuaremos a raspar a parte preta da torrada ao invés de consertarmos a torradeira? Se demorarmos muito neste caminho, tudo pode acabar em frustração.
A motivação pela qualidade em nossas empresas, não chega a ser suficiente para proporcionar um verdadeiro estado de qualidade e sem ela, programas mágicos, embalados em belíssimos e caros pacotes tentam, mas não conseguem, assegurar as vantagens competitivas esperadas do investimento.
Resta um melancólico consolo: qualidade é mesmo coisa de Japonês. Assim resignados, ela continuará sendo um investimento charmoso mas incerto, atuando no contexto de estruturas funcionais, que não reconhecem a primazia do atendimento sobre a hierarquia.