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INSIGHTS EM TEMPOS DE PANDEMIA

Ayrton Sérgio Rochedo Ferreira

          O mundo se encontra diante de um problema que já estava criado antes, não pelo Covid-19, mas por ignorarmos nossa fragilidade para lidar com a aleatoriedade dos eventos globais. A prova disso é a surpresa generalizada que a crise causou em todos os países e a constatação de que sabemos muito pouco sobre o “como” e “até quando” esta pandemia vai perdurar, além das mudanças que vai trazer.

         Se há algo que a pandemia pode nos ensinar é olhar além da perspectiva do progresso econômico e social e aceitar que uma verdadeira sociedade humana precisa estar preparada para encarar desafios ainda maiores que os provocados pela dinâmica do mercado e pela corrida da inovação, até então nossos limites mais radicais. Os desafios como o que estamos vivendo agora se encontram na perspectiva da defesa da humanidade contra eventos aleatoriamente escondidos no futuro, de ocorrência perturbadora, porem imprevisíveis quanto a sua natureza e tempo.

          Se a situação a que estamos nos referindo é um “Cisne Negro” e se enquadra na metáfora criada por Nassin Nicholas Taleb, (A lógica do Cisne Negro), é uma questão que o autor terá mais competência que eu para responder. Mas o que preocupa, independente de metáforas, é que eventos como abalos sísmicos ou pandemias como o Covid-19 e a gripe espanhola, trazem consequências trágicas. Por definição são eventos inesperados, que chegam sem indícios e quase impossíveis de se prever com os recursos disponíveis na época, por aqueles que sofrem suas consequências.

         E por que esta questão se torna tão importante agora? A principal razão é porque está mais do que na hora de lidarmos de forma diferente com a tensão que nos divide entre o racionalismo (como gostaríamos que as coisas fossem para que fizessem sentido) e o empirismo (como as coisas realmente são). É bem conhecida entre os gestores a estória do peru que tinha um grande apreço pelo seu dono porque este o alimentava diariamente muito bem. Até que chegou o Natal... O peru, muito racional, nunca poderia imaginar..., mas o dono sempre soube! É necessário construir cadeias de consequências futuras para pensarmos não só com o modelo mental da ave (para quem o bom tratamento fazia sentido porque se achava amado pelo dono), mas também com a cabeça do seu dono (para quem o bom tratamento tinha outros interesses). Taleb alertou para isso. É preciso parar de negar uma região da realidade de onde nos chegam eventos inesperados e ilógicos, à primeira vista. Não podemos mais nos contentar em possuir competência para lidar somente com o racional, previsível e evitável, (guerras, poluição, crises econômicas, aquecimento global, doenças) e ainda por cima armados com um modelo mental geográfico e tombarmos perplexos diante da incapacidade para conter um grande desastre ecológico, ilógico e que não respeita fronteiras, seja lá o nome que se dê a ele. Agora mesmo, foram dadas respostas mais eficazes que outras à atual pandemia porque elas não partiram de um protocolo de governança global e deixaram muito espaço para tentativas e erros de tantas nações. Foi o mesmo que querer impor nacionalidades diversas à pandemia. Cada um a tratou como se fosse um evento circunscrito à sua geografia.

          Aprendemos olhando para trás, pelo retrovisor, e por isso nunca estamos preparados para lidar com essa outra classe de eventos chamados aleatórios e globais, que têm pouco ou nenhum registro no passado. A visão racional e a cultura de aprender com a experiência podem falhar quando nos referimos a fatos altamente imprevisíveis, que podem nunca ter acontecido antes, no passado que conhecemos, nem se repetir no espaço histórico de algumas gerações.

          Não há nada de errado entre estes fatos e a vida presente. Sempre foi assim. Estamos cercados de eventos que escapam à nossa atenção, ou porque são permanentes e minimamente incrementais (algum dia você se preocupou com a inclinação constante do eixo terrestre?) ou porque são ocasionais e de proporções gigantescas (os dinossauros não sumiram do planeta porque envelheceram. Sua destruição foi súbita, em razão do último grande meteorito que se chocou com a terra, segundo a teoria mais aceita). Estes fenômenos continuarão acontecendo, mas nada garante que se mantenham fiéis às suas proporções ou frequência. Portanto, não há razão para atribuirmos a estes eventos um valor tão desprezível que não valha a pena considera-los, ou tão perturbador que valha mais a pena quebrar o termômetro para não conhecer a febre. Por serem tão assimétricos em relação à nossa noção de tempo e à duração das nossas vidas, racionalmente não os incluímos em nosso campo de responsabilidade e gestão e simplesmente os classificamos como “um evento aleatório”, tal como o Covid-19.

          Obviamente, o avanço necessário para começar a lidar com fenômenos inesperados não se dará pela via da previsão (é impossível prevê-los), mas da provisão. Vamos precisar encará-los pela via logística da construção de um arsenal de soluções de contenção e mitigação de impactos aleatórios, mesmo não sabendo o que serão da próxima vez. Será necessário criar abundância de recursos e meios globais, em cooperação mundial, para poupar vidas, conter os estragos e não repetir o que está acontecendo agora.

          Para estes casos, a abundância passará a ser estratégica. Refiro-me a abundância de meios; aquela imperecível métrica racional que tenta igualar oferta com demanda deixa de ser apropriada para a gestão de eventos de grande incerteza. A disponibilidade de meios colocados à disposição terá que ser exageradamente maior que a demanda imaginada, para lidar com o imponderável. Neste novo campo de gestão será preciso destinar grandes volumes de recursos físicos, lógicos e humanos para conter ou atenuar os impactos da aleatoriedade extrema e suas consequências imprevisíveis. Não é como a chuva torrencial que inunda uma região, mas lhe permite continuar planejando meios para lidar com a próxima, porque não muda a média de precipitações anuais. Não é como o aquecimento global que pode levar um século até que a temperatura média do planeta aumente em 10 graus, num processo incremental, de futuro trágico, mas administrável (o que nem por isso deixa de ser grave em nossas vidas). Mas se uma alteração cósmica elevasse a temperatura média da Terra em 10 graus no intervalo de um mês, essa perturbação repentina instalaria um novo patamar térmico em nosso habitat que tornaria impossível a vida além do próximo mês, se fossemos pegos de surpresa! Eventos aleatórios alteram drasticamente o curso da vida e não emitem sinais de aproximação por que não se aproximam, irrompem e só nos deixam uma saída: conter suas consequências uma vez que não podemos atuar antes sobre suas causas irracionais.

          As instituições mundiais terão que considerar que a provisão de soluções logísticas multidisciplinares e transnacionais passe a ser uma questão de governança global, para lidar com esses eventos de força maior. Este novo campo de conhecimento, que eu gostaria de chamar de eco-logística, deverá cumprir uma atuação transversal nas relações econômicas, políticas e sociais do mundo. Em nome da eco-logística o ambiente de negócios terá que buscar soluções conciliatórias complexas, como acomodar a prática da cooperação no mesmo espaço em que hoje só exercita a concorrência. O que, aparentemente, é paradoxal, terá que ser conciliado e harmonizado, gerando uma nova cultura de fazer negócios e, ao mesmo tempo, cooperar supra negócios.

          Os dinos que nos perdoem, mas não precisamos ter a mesma sorte que eles. A gripe espanhola teria sido menos devastadora se ocorresse hoje, mesmo com nosso déficit atual de infraestrutura para estes eventos. No futuro, nossos filhos e netos desejarão dizer o mesmo do Covid-19. Mas para que deixemos de colocar no futuro o consolo de nossas perdas temos que admitir cientificamente estes “eventos aleatórios” no radar de nossas preocupações ecológicas atuais e criar um estoque de soluções alternativas, no estado da arte mundial, para sobreviver às suas consequências. Contar com a sua baixa probabilidade, desprezá-los, ou querer lidar com eles com mentalidade de nação e não de mundo, não os afastará de nosso caminho. Aprender com o último desastre, não nos preparará para o próximo...

 

 

Rio de Janeiro

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