ARTIGOS
TERCEIRIZAÇÃO À BRASILEIRA
Ayrton Sérgio Rochedo Ferreira
A história da terceirização no Brasil assemelha-se a do curandeiro e do boticário, que eram sócios. Os negócios iam mal e resolveram discutir abertamente suas falhas. Quando o curandeiro reconheceu que usava remédios para curar males que não estavam indicados nas bulas, o boticário completou: "... mesmo que as indicações fossem corretas os remédios não teriam efeito; de minha parte, eu nunca sigo as fórmulas recomendadas".
Se em outros países as demandas pela terceirização trouxeram uma certa independência à gestão empresarial, livrando-a das atividades secundárias e de apoio, focando e concentrando o capital intelectual nos processos que atendem mais diretamente aos clientes finais, no Brasil tal não sucedeu. Nesse país, que é mestre em enviesar soluções, o curandeiro utilizou o remédio para outros males. Fugir das cargas tributária e fiscal foram uma sedução mais forte do que propriamente fazer a empresa convergir para o foco dos seus negócios, em proveito da satisfação dos seus clientes.
Em compensação, de parte das empresas terceiristas, o boticário também não seguiu a fórmula recomendada. Empresas que se especializaram em terceirização, ao invés de aprofundarem o seu know-how em produtividade, conformidade e estabilidade de processos, para oferecerem a seus clientes um diferencial baseado em fazer mais e melhor com menor custo, especializaram-se, na verdade, no achatamento salarial de seus empregados, buscando na redução de despesas e não na qualidade que oferecem, a sua condição imediata de funcionamento.
É claro que há exceções. O que nos interessa, no entanto, são as feições gerais que ganharam estas experiências, que deveriam servir de alicerce para as novas estruturas do século XXI, mas que na verdade precisarão ser repensadas para nos levarem até às estruturas em rede, esperadas das organizações num futuro próximo. A solução verde-amarela configura um caso típico de dois erros que se esforçam para virar um acerto. Analisada de perto, a impressão é que boticário e curandeiro se merecem e sempre serão sócios nessa malfadada impostura.
A experiência brasileira com terceirização teve início com empresas que, na verdade, desejavam se livrar do pesado fardo da folha de pagamento e, para isso, promoveram verdadeiras ações de desmembramento de seus quadros. Foi a isso que se assistiu nos últimos anos no Brasil: desmembramento com nome de terceirização.
"O mercado tornou-se muito competitivo. Nossos resultados têm sido afetados por despesas muito altas. A empresa tem que reduzir seus efetivos, mas gostaria de poder aproveitá-los como atividade terceirizada. Interessa a vocês?"?
Que remédio!
Ao invés de consertar o primeiro erro, administrando melhor a satisfação dos clientes e o desempenho das equipes, prefere-se "fazer os números" reduzindo despesas. Custar menos parece ser mais fácil que custar melhor. Ato contínuo, as empresas desmembram parte dos seus efetivos, ajudando-os, é verdade, a organizarem-se como empresas terceiristas e contratando seus serviços que, no fundo e na essência, são os mesmos, com a diferença de uma nova carteira assinada e de um novo CGC, que passa a responsabilizar-se pelos encargos trabalhistas. O efeito é o da batata quente, porque a matemática continua a mesma e só o caderno é que troca de mãos: as taxas de encargos que se pagavam aqui se pagarão lá.
E que novas empresas são estas? Nascidas por imposição e não por vocação do negócio, expelidas da empresa mãe, ontem, um grupo de empregados, hoje, "empresária" mal arranjada, mergulhados numa economia de crédito espoliativo, estas são as novas empresas terceiristas: sem capital de giro para expandir seus negócios, sem carteira de clientes para fazer escala e sem experiência de gestão empresarial. As empresas surgidas por desmembramento passam, invariavelmente, de um a três anos amarradas ao contrato da empresa mãe, buscando massa crítica para experimentarem alguma sustentação. Não têm luz própria. São planetas que giram em torno da empresa que as terceirizou, ou que as desmembrou. Passado algum tempo, as leis do mercado, que não toleram misericórdia ou proteção, as fazem se confrontar com a dura realidade da concorrência e muitas delas sucumbem, antes de puderem se libertar da estranha órbita.
A rigor, todas as atividades que fazem um negócio funcionar podem ser terceirizadas, menos a sua atividade fim. Quem terceiriza a atividade fim, entrega o seu negócio para terceiros. Tenho encontrado muitos casos de conflito nesta constrangedora questão, aparentemente tão simples de resolver: qual é o seu negócio? "Fabricar (Transportar/Revisar) X" ou "Comercializar a fabricação (o transporte/a revisão) de X". Para quem gosta de boas polêmicas, experimentem acender esta discussão entre o time da produção e o time comercial. Mas mesmo depois de resolvido este primeiro nível da questão, terceirizar as atividades "não-fim" de uma Organização, exige alguns cuidados especiais. Terceirizações mal pensadas trazem o risco de debilitar várias capacidades estratégicas que as empresas possuem e devem zelosamente desenvolver e proteger:
Discernimento para Saber Querer
Pouca ou nenhuma importância tem sido dada a esta capacidade nos escalões intermediários das organizações. Saber querer é mais que querer, é mais que poder. Não adianta ter a capacidade de comprar serviços ou produtos, quando se terceirizou a capacidade de saber que serviços e que produtos são estes, em termos da sua eficácia para o desempenho geral dos processos e para a satisfação dos Clientes. Algumas atividades, quando terceirizadas, retiram da contratante esta capacidade. Isto se explica pelo fato de que, na cadeia fornecedor / cliente interno, a aceitação ou a recusa de um produto ou serviço pode se dar no momento da sua aplicação no processo, enquanto que, no caso de um fornecimento terceirizado, o formalismo dos contratos estabelecidos, exige, muitas vezes, a interveniência prévia de outros atores, tais como o gestor de terceirização ou até mesmo a gerência de compras, ambos com interesses negociais muitas vezes conflitantes com o mérito da questão. Desta forma, o preço de um serviço contratado, visto individualmente, pode se tornar mais importante para quem o contrata que o seu efeito sobre o produto final da organização, afetando uma sinergia essencial que há entre os processos e que garante o sucesso do desempenho organizacional. Os fatores que garantem esta sinergia não se encontram (somente) no produto final ou nos serviços a ele agregados. Saber querer é uma capacidade chave, exigida em todas as atividades e em todos os níveis organizacionais, que pode fazer a diferença no desempenho final de um negócio.
Motivação e Comprometimento para Querer Fazer
Nas terceirizações nascidas por desmembramento, o componente cultural, na maioria das vezes, é desprezado: pessoas que trabalham lado a lado vestem o mesmo uniforme, subitamente passam a trabalhar em empresas diferentes. É o desafio da retórica contra a essência. Na retórica, passam a ser empregado de uma outra empresa. Na essência, o mesmo itinerário de trabalho, quando não o mesmo ônibus de transporte de empregados, o mesmo horário de expediente, os mesmos e antigos locais de operação, os mesmos processos e equipamentos, o mesmo refeitório... e laços afetivos que teimam em permanecer, apesar de brutalmente rompidos "por contrato". A conseqüência é conhecida e contada em prosa e verso por aqueles que dependem dos novos serviços terceirizados para operarem seus processos: choque de comprometimento e de motivação, queda de produtividade, riscos de acidentes, crise de identidade. Não raro, custos adicionais, (mas não de folha de pagamento!), com treinamento complementar e de recapacitação de empregados terceirizados. Muitas vezes, passivos trabalhistas que acabam nas costas da contratante.
Conhecimento para Fazer Certo, hoje e amanhã
Parcelas estratégicas da tecnologia de infra-estrutura do negócio correm o risco de passar para as mãos de terceiristas, quando o ufanismo da redução de efetivo supera a análise criteriosa das atividades que podem e devem ser terceirizadas. A ilusão de que a terceirização, produzida por desmembramento, garante a retenção da tecnologia em mãos conhecidas, pode funcionar em curto prazo, mas não resiste ao tempo. A médio e longo prazo as empresas podem se ver dependentes de uma tecnologia que antes detinham e dominavam. O preço a pagar geralmente é muito alto.
O que é curioso e empresta ares de sabedoria a dupla boticário / curandeiro, em meio a este festival de equívocos, é que também as empresas estrangeiras que operam por aqui, aproveitando a deformação proveniente dos altos encargos e de uma legislação trabalhista engessada, encontraram uma boa fórmula para posar para suas casas-matrizes na foto da produtividade: com uma terceirização à brasileira, elas têm podido reportar melhorias consideráveis nos indicadores de faturamento "per capita", reduzindo efetivos por terceirização.
A diferença está na escala. Para uma empresa multinacional, pode ser apenas um artifício, que se dilui na consolidação final entre várias outras operações, de outros países. Para uma nacional, é uma cultura que está sendo criada, uma estratégia que está sendo decidida. Bom mesmo é estar seguro nas mãos de farmacêuticos e médicos competentes.